20 março, 2010

A matter of perception


Um acto criativo envolve acção, movimento, inquietude. É uma alteração em relação a um estado prévio, uma manipulação e um câmbio de conotações e significados.
Ao observarmos esta situação, podemos estabelecer um paralelismo com práticas litúrgicas, por exemplo. Senão vejamos como é comum ás práticas litúrgicas atribuir significados, alterar designações ou de fazer apropriações, muitas vezes usando o banal e assim mudando a nossa percepção sobre ele.
Se usarmos como exemplo as liturgias católicas, podemos verificar isto nos simbolismos atribuídos ao pão e ao vinho, que durante a liturgia são transformados em corpo e sangue de Cristo. Da mesma forma, temos em algumas práticas de incisão cutânea em tribos africanas onde marcas especificas ganham uma conotação mágica ou de poder através do significado que lhe é atribuído.

Desta forma, o fenómeno da apropriação é uma via de modelar a apreensão do real destinada ao interveniente na acção litúrgica, que desde logo aceita esta rotação semântica. O participante na acção litúrgica, assim como o observador ou publico da obra de arte ou acção criativa está consciente deste cambio de conotações e significados e manipulações matéricas, aceitando-o dado o contexto onde está inserido.
È neste ponto em que falamos de um câmbio de semântica, num fluxo de significados, que podemos estabelecer uma comparação entre as noções de apolínio e dionisíaco. Enquanto que o apolínio representa uma clareza de discurso, uma valorização do ego e da individualidade, ou num discurso mais simbólico, a luz, por outro lado, Dionísio será o deus da escuridão onde o ego se perde e se funde com a massa, onde todas as coisas fluem e as noções e contextos se confundem e se misturam.

Neste entendimento, o artista pode ser encarado como uma espécie de sacerdote ou xamã, como um condutor da acção que vê o seu gesto, o gesto criador, elevado em termos de valor.
Temos inúmeros exemplos desta situação em artistas plásticos: Joseph Beuys, Jackson Pollock, Ana Mendieta, Hermann Nitsch, Gunter Brüs, só para citar alguns.
Podemos afirmar que o artista é um condutor de símbolos, conotações e emoções.

Mas do gesto e da acção surge sempre o resíduo, o produto, o rasto.
E é aqui que me quero prender para chegar ao objectivo deste texto.
O resíduo litúrgico não é desprovido de importância, mas sim elevado a relíquia, tal como os objectos ou registos fotográficos e sonoros de uma performance de Hermann Nitsch por exemplo, que são posteriormente apresentados ao público, carregados de uma energia simbólica avassaladora.

Aqui chegamos aos Halo Manash, colectivo finlandês que explora os meandros litúrgicos e ritualistas da musica ambiental. Vou-me focar essencialmente nos dois últimos discos: “Language of Red Goats” e “Am Kha Astrie”.
Ambos os discos são registos de algo muito superior à mera elaboração de música. Eles são registos de uma acção, repletos de espacialidade e movimento. São relíquias de acções xamânicas, onde cada som tem a capacidade de nos transportar para um espaço irreal, fora do nosso plano físico.
São registos minimais, onde cada som vale por si e tem que respirar. Sente-se o pulsar da respiração, os ecos modelados pelo local da liturgia, pela cadência com que surgem novos elementos ou os antigos se repetem.

São desde logo trabalhos onde se requer um determinado estado de espírito e onde não podemos cair no erro de os ouvir enquanto música ambiente. Estamos perante modelações e transformações de gravações de campo tornadas abstracta, onde o contraste é atingido apenas momentaneamente e sem padronizações. Será talvez o equivalente visual a uma tela de Rothko, onde o minimalismo da composição é superado a partir do momento é que tomamos consciência de outros valores matéricos. O mesmo se passa aqui. É necessário estar consciente que esta não é uma audição fácil e que estamos perante algo muito maior do que aquilo que aparenta à partida. Ou não fosse um disco que reflecte uma realidade de introspecção, ritualidade, liturgia e ascensão.

Agora pode muito bem vir a dúvida: qual a veracidade do que está por trás do disco? Será ele realmente uma prova ou relíquia de uma acção xamânica, ou apenas um engodo ou recriação de algo que nunca existiu?
Respondo com uma pergunta: isso é relevante? Serão as relíquias espalhadas por esse mundo fora verdadeiras? A “verdade” existe se quisermos aceitar os factos e deixar-nos induzir pelo poder da sugestão. A experiencia de Halo Manash não poderia ser mais “verdadeira”.