01 abril, 2011

Mamas Imperiais



A nossa cultura está saturada de heterossexualidade. A mais subtil e negável maneira pela qual a avaliação sexual é realizada – e a mais ubíqua – é o olhar, a inspecção visual do corpo. Sempre presente num contexto sexual está o potencial de objectificação sexual, ocorrendo este quando o corpo ou partes dele são separados da pessoa, convertendo-os a instrumentos ou símbolos imbuídos da capacidade de a representar por inteiro.

Todas as culturas moldam os desejos da sua população de maneiras profundas e pessoais. Muitas sociedades ferozmente favorecem um tipo de corpo ao invés de outro; muitas mantêm standards específicos de beleza e algumas requerem até que os seus membros se sujeitem à agulha e à faca para se adequarem a esses moldes. Num mundo ocidental centrado no desrespeito pelo outro, na auto-responsabilidade, na desunião familiar, no descrédito religioso, e com mais e mais meios electrónicos de comunicação, o contacto diário com outros seres humanos reais e tangíveis pode ser inteiramente evitado, seja no tráfico, nas filas para o supermercado ou no banco. Isto é isolante, e com uma "Wille zur Mach" materialista instalada, movemo-nos cada vez mais para a esfera da identidade pessoal. Este isolamento fortalece a modificação corporal como um tipo de expressão e, ao mesmo tempo, obrigação. A mistura de isolamento e sobremediatização afecta-nos a nível psicológico. A objectificação postula uma externalização do olhar levando a que, em certo ponto, nos olhemos a nós próprios como objectos observados e avaliados. Uma socialização efectiva começa com o cumprir de uma série mínima de pressões externas, prosseguindo na identificação interpessoal, e culminando no indivíduo a imbuir os valores sociais e atitudes circunscritos pelo zeitgeist.

Mesmo ignorando o feminismo na sua vertente panfletária, é inegável que a cultura Ocidental detém subtis maneiras de perverter os sentimentos femininos acerca da sua própria imagem impondo-lhes rígidos modelos físicos. Grandes e firmes mamas tornaram-se num símbolo de poder e numa “pila para senhoras”. Não querendo transportar esta analogia por muito tempo, comprar um par de implantes justificou a muitas mulheres não só um aumento de auto-estima mas um almejar por mais poder social. Ironicamente, obter uma maior pila simbólica fe-las sentir mais 'femininas’. São as mamas artificiais uma nova forma de inscrição social? Um rito de passagem? Uma cultura centrada em portentosos úberes plásticos: uma cultura do falso. Do falso épico. Não entendo como podem inspirar desejo nem mesmo apreciação estética. Todo o espectáculo me parece surpreendentemente pouco sexy na sua hipersexualidade gigante. Não há arte do striptease aqui, não se revela lentamente, não há descalçar lento das meias, não se vive o personagem da dança. Talvez só um miúdo alcoolizado de 22 anos consiga realmente apreciar este mundo visto através de óculos cárneos.

Os ícones e ídolos modernos são presenças eternas. Os seus retratos, como as imagines romanas (máscaras mortuárias em cera ou bustos em pedra a partir delas realizados), são guardados em revistas cor-de-rosa no relicário doméstico junto à TV. A identidade moderna está condensada em unidades descontínuas de personalidade transmitidas através da linha dinástica civilizacional. O clã, ou tribalismo, enquadram ainda a ética e a sociedade. As esculturas-personas do Ocidente tiveram origem no Egipto mas adquiriram a sua configuração definitiva na Roma apolínea. Roma estabeleceu a lista dos eus ocidentais, nomes gravados na pedra.

O apolinismo grego era apelativo para os romanos, um povo altamente ritualista, com o seu solene formalismo no domínio da religião, do direito e da política. Roma tinha como centro o culto do Estado; a história e a hierarquia eram as formas da sua identidade nacional. Como Roma, a persona moderna converteu o estilo grego em algo de monolítico para seu próprio propagandismo. A elegante escala humana deu lugar à desmesura de um estilo oficial, governamental. O Kouros transformou-se em chuchas colossais que incharam e se alongaram como torres. Os romanos não imitaram a simples e vigorosa coluna dórica do Pártenon, nem a polida e elegante coluna jónica do Erecteion e do Propileu; mas antes a coluna coríntia, gigantesca e com nervuras, do Templo de Zeus situado na planura logo abaixo da Acrópole. Os bustos modernos são vastos templos do Eu-Estado, túmulos e fortalezas. Nenhum templo grego tem aspecto de túmulo.

A mente romana não era especulativa nem idealista. O templo grego é feito de bom e sólido mármore; o templo romano, de tijolo revestido a mármore. As esculturas dos frontões do Pártenon são finamente cinzeladas tanto na parte da frente como na de trás, mesmo no minúsculo frisado das vestes que não podem ser vistas desde o chão. Mas a parte de trás de uma escultura romana inserida num nicho era muitas vezes deixada quase em bruto. A metafísica do olhar grego, um esteticismo aristocrático que criava uma ordem espiritual a partir do visível e do concreto, é suprimida. Oblitera-se o erotismo e a sonhadora obliquidade. A persona contemporânea veste uma máscara edificada para os outros; a persona romana era uma construção pública: possuía densidade, peso, severidade. A grande estátua de Augusto na Prima Porta, por exemplo, é um Kouros convertido num diplomata sóbrio e cortês: a lei e o costume como fins sagrados em si mesmos. Os gregos eram peripatéticos, falavam enquanto caminhavam. A discussão era movimento e improvisação. As mamas inchadas são declamatórias e palavrosas. Sobem para o palanque e nunca mais de lá saem. A persona romana era a proa estável do antigo navio do Estado. Na verdade, o rosto era ao mesmo tempo rostro (o espigão da proa de um navio) e Rostra (tribuna adornada com espigões retirados dos barcos inimigos de onde os oradores discursavam no fórum).

A personalidade romana era equivalente a épica grega – um repositório da história racial. O grupo era soberano. A legião romana, muito maior que a falange grega, era uma extrapolação da vontade romana: força, resolução, vitória. Roma começou por combater os seus vizinhos itálicos e acabou reduzindo a escravidão todo o mundo conhecido. A artificialidade mamária é um confronto bélico de identidades celebrado num sumptuoso triunfo auto-publicitário tal como as paradas militares simulavam a linearidade da história. As mamas grandes são factos que amplificam a realidade; a arte grega transformava a realidade evitando os factos. A arte romana era documental, ao passo que os gregos tratavam a sua história como alegoria. O apolinismo grego era uma projecção sublime, a mente convertida em matéria irradiante. Já o apolinismo romano era um jogo de poder, uma proclamação da grandeza nacional, esculpindo e fundindo na fronteira corporal Estado e pessoa como monumentos.

2 Comments:

At 1.4.11, Blogger ::Cardoso:: said...

Resumindo... gostas mais de mamas gregas do que italianas? é?

 
At 1.4.11, Anonymous Anónimo said...

"Roma começou por combater os seus vizinhos itálicos e acabou reduzindo a escravidão todo o mundo conhecido." Não é bem assim, Roma foi muitas vezes vendida aos povos sem uso da espada. Roma antecedeu o laicismo ao criar leis para a civitas romana, leis fundadas pelo Homem e não pelos Deuses. Foram mestres na arte da diplomacia, e aquilo que ofereciam como ideia de civilização era tão cativante que não foram poucas as vezes que se romanizou um povo sem uso da violência ou coerção.

Há uma série de documentários da BBC chamados "Ancient Civilizations" (6 episódios de uma hora cada) que aconselho vivamente.

 

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