10 março, 2011

Masoquismo Musical - Parte Dois

(continuação da Parte Um)

V.
A fim de discutir outras abordagens para este problema, devemos aprofundar a análise acerca do que é uma emoção.

Embora não exista uma harmonia absoluta sobre quantos e quais componentes existem numa emoção, a maior parte da pesquisa psicológica parece concordar, pelo menos, na premissa de que estas contêm, para além de uma componente afectiva, uma outra cognitiva. A primeira pode ser expressa sob a forma de uma crença, atitude, desejo ou avaliação que se concentra e identifica num ‘objecto da emoção ': assim, se uma pessoa tem medo, sente-se de uma forma (desagradável), e sente-se assim acerca de um objecto ou situação. A presença deste objecto intencional/real (cognitivo), para o qual estão direccionados os pensamentos e sentimentos, é então tida como fundamental para o paradigma de uma emoção.

Para além destes factores, pode-se argumentar que qualquer emoção tem igualmente componentes comportamentais e fisiológicas: estar amedrontado pode tipicamente envolver um corpo que se encolhe sobre si, tremer, fugir quando na presença do objecto temido, e isto, por sua vez, exige um certo estado dos sistemas endócrino e circulatório.

Relativamente à componente afectiva, aquela parte de uma emoção que consiste no que se sente (no sentido estrito da palavra), existem dúvidas a respeito da sua concepção concisa. Este consiste numa determinada coloração geral da consciência, uma certa qualidade de sentimento interior, dos quais o prazer e a dor são importantes, embora não a única dimensão. Noutro ponto de vista, a componente afectiva é simplesmente um conjunto de sensações corporais internas, como por exemplo sentir nós na garganta e arrepios na pele. Estou assim inclinado a pensar que este componente é melhor entendida como envolvendo ambos os tipos de coisas, e, portanto, irei referir-me a estes, respectivamente, como sendo os aspectos fenomenológicos e sensoriais da componente afectiva da emoção.

Creio podermos agora claramente estabelecer que a resposta emocional ‘padrão’ a uma obra musical não é, na realidade, um caso de emoção plena. Principalmente porque a música é incapaz de fornecer um objecto apropriado para essa emoção ser direccionada, mas também porque não gera as crenças, desejos ou atitudes associadas a esse objecto e que são essenciais para uma emoção ser o que é. Tendencialmente, este enfraquecimento da componente cognitiva da resposta emocional resulta também na inibição ou recrudescimento da maioria dos comportamentos e tendências comportamentais a ela associados. As componentes fisiológica e, mais essencial, a afectiva são, no entanto, ocasionalmente retidas com toda a sua força.

Mas, se inevitavelmente a música falha na indução por si própria de emoções contextualmente incorporadas de tristeza, ainda assim alguma música parece pelo menos capaz de incutir o sentimento característico de tristeza: aproveito então para lançar a distinção entre emoções (incluindo elementos cognitivos) e sentimentos associados (falta de elementos cognitivos).

Não podemos ainda assim cometer o erro de apresentar a percepção da expressão musical como uma empresa descomprometida. Na experiência estética as emoções funcionam cognitivamente informando-nos acerca do carácter das obras que escutamos. Boas ou más, são o medidor da sensibilidade contida numa peça, e o valor da nossa resposta negativa é essencial no discernir da música que nos atormenta. O que apreendemos através dos sentidos influencia o que sentimos, e, o que sentimos, influencia o que dizemos sentir. Descrevemos qualidades musicais através de vocábulos emocionais, provisionalmente identificados com base na sinergia fisionómica com sentimentos passíveis de ser experienciados na vida real.

VI.
Poderíamos afirmar que a música induz não uma emoção estética nem memórias de emoções passadas, mas sim emoções musicais análogas às ditas ‘normais’. Surgem, no entanto, duas questões imediatas: como se diferenciam estas emoções-musicais das emoções-ordinárias, e, por sua vez, após uma identificação dos aspectos comuns entre si, justificará atribuir-lhes um nome único?

A tristeza expressa musicalmente é uma coisa muito diferente da tristeza (vi)vida; é apenas por uma espécie de analogia que usamos a mesma palavra para ambas. A tristeza na música é despersonalizada: é 'retirada' ou 'abstraída’ a partir das situações particulares em que normalmente é sentida, tal como na morte de um ente querido ou no estilhaçar de sonhos. Assim sendo podemos dizer que a música é o carro funerário aonde vai a tristeza, mas devemos distinguir tristeza-musical, que é uma experiência feliz, da tristeza-real, que não é. A tristeza-musical é sentida (no sentido estrito da palavra) como uma tristeza-real, mas (1) carece de um objecto ou contexto situacional, e (2) não tem as tradicionais condições causais de tristeza. O que tem em comum com a tristeza-real é então, provavelmente, um certo sentimento possivelmente diminuído em intensidade, e certos distúrbios fisiológicos subjacentes.

Vale a pena considerar outra sugestão: quando somos ‘entristecidos’ por uma peça estaremos então apenas a experienciar um faz-de-conta ao invés de estarmos imbuídos por uma tristeza-real? Suscitará a música certos estados de sentimento que tomamos serem emoções (no sentido pleno da palavra) por fornecermos nós próprios o conteúdo cognitivo que lhes falta?

Estou céptico que nos casos em que estamos interessados, aqueles cuja resposta emocional é profunda, vivamos este faz-de-conta. As respostas imaginativas à música são tipicamente variadas, e, quando estamos "entristecidos" por uma peça deprimente, ou "assustados" por uma canção atemorizante, não estamos propriamente a fazer-de-conta que existe um objecto específico, com características particulares, que possamos prantear ou temer, nem por sua vez fazemos-de-conta possuir certas atitudes ou desejos relativos a esse objecto materializado.

Não está contudo ainda evidente porque o conjurar de emoções-musicais, análogas descontextualizadas de emoções-reais, seja por si só a resposta de que indagamos acerca da procura humana por respostas emocionais negativas à música. A picada de uma agulha dói menos do que a ponta de uma faca mas não é por esse motivo que a desejamos. Porque deve uma lágrima imaginária ser tão ou mais desejada do que uma lágrima real?

VII.
Podemos agora mais detalhadamente descrever em que consiste uma resposta emocional forte à música, listando as condições de audição que a elas conduzem.

Dado que, claramente, nem todas as audições de obras emocionalmente poderosas afectam da mesma maneira um ouvinte (nem tal se desejaria), a primeira condição parece ser que uma peça seja de um género/estilo que lhe seja familiar, de maneira a que a sua fluência e carácter específicos possam ser registados internamente (mas não tão familiar/reconhecido que provoque tédio ou saturação).

A segunda condição, central à “atitude estética”, exige que as faculdades do ouvinte se concentrem genuinamente na audição, seguindo atentamente a sua estrutura, progressão e carácter emergente, ignorando por conseguinte todos os estímulos provindos do mundo extramusical.

Uma terceira condição requer uma abertura emocional ao conteúdo musical exposto, opondo-se portanto à contemplação distante da peça: devemo-nos permitir a identificação com a música, calçar os seus sapatos, permitir-nos ser tocados pelas emoções ouvidas de uma maneira receptiva.

Um ouvinte não é, no entanto, instantaneamente empurrado para um turbilhão emocional. É geralmente em virtude do reconhecimento das emoções expressas na música, ou do drama incorporado num movimento, que ocorre uma reacção emocional. Usualmente isto acontece através de um reflexo empático: identificamo-nos com a música que estamos a ouvir, partilhando e adoptando a sua emoção ao longo da sua execução, e, assim, acabamos por sentir aquilo o que ela (na nossa imaginação) transporta.
Estas emoções-musicais diferem das ‘reais’ na dimensão cognitiva, pois não se manifestam em objectos nem em pensamentos a eles associados. Contêm uma componente cognitiva, mas diluída em comparação com a sua contrapartida real.

Esta permanece ordinariamente indeterminada: não se imagina realmente um objecto particular para a tristeza que se sente nem se tecem crenças imaginárias sobre ele. Permitimos apenas que os sentimentos tenham algum foco. O objecto de uma resposta empática à música é meramente formal.

(para a semana, a Parte Três)

1 Comments:

At 15.3.11, Blogger jorge silva said...

"O poeta é um fingidor" escreveu o Pessoa, não o são também os músicos e os ouvintes?
Quantas vezes não extrapolamos de um tema uma sensação que nem sequer lá estava originalmente, pelo menos não na mente de quem o concebeu, e o fazemos nosso?

 

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