O Tio Pires e o seu conjunto
Em concreto, não me lembro de mais nada desse dia. O único facto de que tenho praticamente a certeza é que devo ter ouvido o This Nation's Saving Grace dos Fall algures durante o dia. O album saiu em Setembro de 1985 e eu comprei-o nas férias de natal do mesmo ano, numa loja de discos do Centro Comercial Brasilia, com o dinheiro que um amigo meu me tinha dado para lhe comprar um qualquer disco do Jonathan Ritchman & The Modern Lovers (desculpa lá Zé... nunca te devolvi o dinheiro). E durante o mês seguinte creio que não devo ter ouvido mais nada.
Ouvi os Fall pela primeira vez numa cassete que me emprestaram pouco tempo antes. Num dos lados tinha o Hex Induction Hour e no outro o the Wonderfull and Frightning World of the Fall (aquela versão de cassete com uma quantidade de temas extra). Para um miudo de 14 anos que deveria andar a uma dieta de Cure ou qualquer outra coisa do género, temas como Hip Priest e C.R.E.E.P. pareciam vindos de outro planeta.
Já tinha ouvido alguns temas do This Nation's no Som da Frente, mas o conjunto de temas era incrivel. Mansion, Bombast, LA, Paintwork, I am Damo Suzuki.... Tornei-me um fã incondicional dos Fall e desde essa altura fui acompanhando a banda como podia. Comprava os discos que encontrava quando vinha ao Porto, copiava os outros. Achava piada às particularidades do Mark E Smith, ao facto daquilo ser a banda DELE, achava todos os temas perfeitos - O Curious Orange é realmente perfeito.
Mas há limites para tudo e com o tempo lá me fui convencendo que nem tudo eram rosas no mundo maravilhos e assustador dos Fall. Falha sempre qualquer coisa. Sempre achei que pareciam albuns feitos em cima dos joelhos. Mal produzidos. A estética do "Ai queres um album novo? Toma lá e não me chateies". Acompanhar o ritmo de produção dos Fall nos anos 80 era complicado e os vinis com aquele autocolante a dizer "Import" custavam tanto como um CD hoje em dia. Aguentei até ao album Extricate.
A partir daí ainda ouvi com atenção o Light User Sindrome (creio que foi o primeiro sem o guitarrista Craig Scanlon e o ultimo com a Brix Smith). Adorei o Marshal Suite, o album pós incidente de Nova Yorque em que Mark E Smith se desentende com a banda em pleno palco, bate na namorada da altura (a teclista Julia Nagle), a banda regressa a Inglaterra e deixa o pobre Mark E Smith na cadeia em NY.
Este ano saiu um novo album dos Fall. Your Future our Clutter e é o melhor album deles nos ultimos anos. Pela primeira vez desde o This Nation's voltei a ficar entusiasmado com um novo album de Mark E Smith (ao contrário de muito boa gente não achei piada nenhuma à aventura extraconjugal com os Mouse on Mars).
Durante estes anos, nunca tive a oportunidade de ver os Fall ao vivo em nenhuma das suas vindas a Portugal. O mais próximo que tive de os ver foi no célebre concerto cancelado no teatro Sá da Bandeira em que, segundo reza a história, só tinham sido vendidos 12 bilhetes (2 eram meus).
O estado de ansiedade antes do concerto deste sábado era imenso. Os Fall ao vivo pela primeira vez e ainda por cima com um album tão bom para apresentar. Pelo caminho comentava com a minha cara metade que bom bom era ser um concerto de Fall "à séria" em que Mark E Smith se passasse e batesse num membro da banda ou se desentedesse com alguém do público.
Como um velho amigo, Mark superou as minhas expectativas. Quando entra em palco, pouco ou nada o distingue de um morador de Matosinhos a dirigir-se para as compras no supermercado a um sábado de manhã. O casaco igual a qualquer um que me poderia ter sido oferecido pela minha mãe no Natal. A postura "descontraída" em palco, a sua "sensibilidade" a mexer nos amplificadores do resto da banda, a "delicadeza" com que tratou todos os microfones, o "virtuosismo" a tocar teclados. O interesse demostrado num bocado de papel amarrotado, que tanto podia ser a set list como uma lista de compras e a sua irritação com o que parecia ser um velho walkman que teimava em não colaborar no espetáculo de Mark. Quando lhe apeteceu, Mark foi-se embora sem dizer adeus, tipo "olhem, acabem lá isso que eu vou beber um copo". Os Fall são Mark E Smith e uns convidados. Mark não desiludiu. Mark superou tudo o que eu estava à espera.
Há alturas, nestes dias quentes de verão, que quando chegamos a casa depois de um dia de trabalho sabe bem saber que temos uma cerveja fresca no frigorífico. Os Fall são a minha cerveja fresca.
Alguém me disse no final que o Mark lhe parecia o seu tio Pires. Todos nós temos um tio como o Mark. Aquele tio de que toda a gente gosta.
Obrigado tio Pires, volta sempre.
4 Comments:
era a banda que mais queria ver este ano e, às custas do trabalho, fiquei preso em lisboa (devia-me ter despedido).
estou longe de ter idade para em 1986 andar a ouvir música - deus, em 1986 não estava nos planos sequer - e, por conseguinte, estou longe de ter o apreço que tu tens por eles. admiro-os imenso, mas ainda tenho muito para ouvir (o your future é gigante e o hex é uma masterpiece).
grande texto, grandes palavras, grande mark e smith. depois de ter lido isto, ainda fico mais triste por ter perdido isto. and they're not getting any younger.
Que post tao bom, ja tinha saudades do Cardoso no blog, ainda por cima agora com "::" ah ah :)
Alto concerto, gostei tanto que ainda tenho o Our Future no leitor, mas acima de tudo ainda bem que tas de volta aos textos.
Tio Pires \m/
Belíssimo texto. :) E faço minhas grande parte das palavras do vincent moon. All hail the mighty Fall.
não quero destoar, mas foi dos concertos que menos gostei no Milhões.
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