21 abril, 2011

Ainda sobre a crítica


Estranhamente, na arte, e à semelhança de toda uma plêiade de questões filosóficas, a posição relativista – “a cada cabeça sua sentença” - que a tudo vota uma desconfiança irrestrita, parece extraordinariamente crédula no que respeita à ilusão da infalibilidade humana, a ponto de considerar que se várias pessoas tem interpretações diferentes acerca de uma mesma coisa, é mais plausível pensar que não há verdade acerca da matéria, do que pensar que pelo menos algumas dessas pessoas podem simplesmente ter os olhos pouco abertos ou estar simplesmente enganadas; ou seja, que a relação que cada cabeça tem com a sua própria sentença é de algum modo especial, embora tudo o mais seja irreverentemente posto em causa.

Mas, a maneira como estas interpretações são expostas e diferem entre si parece ser motivo de azia para alguns defensores do plural. É aí que começa a prefixagem: onde andam os ‘pseudo’? The hunt is on.

Bela imparcialidade esta que só prova que o que está verdadeiramente em causa na posição relativista generalizada não é a sua pseudo-coerência lógica, nem sequer a aparente atitude de tolerância intelectual e moral para com todas as crenças ou opiniões, mas sim a ilusão psicológica da infalibilidade papal ou divina que ela confere a todos os seus defensores, que ficam assim, por princípio, impossibilitados de errar, visto não haver, ou não ser cognoscível, qualquer verdade objectiva com a qual possam medir-se os nossos pontos de vista relativos e subjectivos. E que mais pode querer um ego que não seja esse wishful thinking de acreditar que é verdade aquilo que queremos que seja verdade e que cada um tem a sua verdade? Querem ‘verdade’ mais consoladora e compensadora, por muito delirante que seja?

Se a crítica não deve ser puramente sinónimo de hierarquias nem pretender afirmar a supremacia de uns artistas em relação a outros, é verdade também que entre críticos exista quem se dedique exclusivamente à escolha dos assuntos e não possua o temperamento que a sua análise requer. Se há espaço na Interweb para vários tipos de críticas - que observando e estudando se podem interpenetrar mutuamente uma e outra e confraternizar sem discussão - é também verdade que esta tecnologia oferece de bandeja conhecimento e maneiras de treinar a redacção e proficiência vocabular; se todas as críticas são amigas naturais das artes, sendo umas ricas e outras pobres, ainda assim deve o crítico almejar a que, na descrição do seu mundo espiritual, não molhe apenas a ponta do dedo para o lamber quando pode mergulhar ambos os punhos e os dois pés.

Num mundo globalizado o pseudo começa a ser aquele que evidencia a diferença ao invés de a aceitar, sentenciando autores anónimos baseando-se apenas na verborreia que debitam. Também quero ser pseudo então: "Gosto" e "Não gosto" nem chega a ter um sujeito explícito (piada gramatical), e creio que é óbvio que, a um debate, pouco traz. Dificilmente imagino alguém a retirar satisfação de tão enxebre análise feita por um perfeito desconhecido. Como explicamos a diferença entre percepções e alucinações se a subjectividade não supõe a objectividade? Como explicamos sequer a existência de representações dissimilares acerca da uma mesma obra de arte? Como as avaliamos, depois de dar conta da sua existência? Não o fazemos. Fica no vazio.

Para que serve então a crítica?

Muitos artistas censuraram-na por nada poder ensinar ao público (que não quer pintar nem rimar nem cantar), nem à arte (já que foi das suas entranhas que saiu), e, contudo, quantos artistas só a ela devem a sua nomeada… será talvez essa a verdadeira censura a fazer-lhe?

A melhor crítica é sempre a poética e divertida, não a fria e algébrica que explica tudo sem ódio ou amor, e que voluntariamente se despoja de qualquer espécie de temperamento; mas sim - uma vez que um quadro ou melodia são uma reflexão do artista - aquela que consistirá nessa representação reflectida por um espírito sensível. Assim, a melhor recensão de um filme pode até ser um soneto ou uma elegia.

É fundamental a interdependência que se estabelece entre artista e crítico. Fundamental para as recorrências que se estabelecem entre criação e respectiva meditação estética. Essa interdependência pressupõe um especial desdobramento: artista e crítico na mesma pessoa - um dobra o outro, vira seu duplo – e neste sentido (também) duplica as capacidades de visão do outro. Um crítico e um artista surgem da dualidade, do poder ser duas pessoas ao mesmo tempo não ignorando qualquer fenómeno dessa natureza.

A experiência estética exige um trabalho de interiorização e a construção de um novo tipo de identidade que resulta do confronto com a obra, de onde se alimenta ou destaca. Esse eu insaciável do não-eu, essa disponibilidade para ser um e outro, capacita o crítico para captar o instante e atribuir-lhe uma significação.

Um homem deve cultivar a curiosidade e a ingenuidade da criança, apontar para um despojamento das convenções (sociais e artísticas) e uma reencarnação do olhar, quer do lado da criação, quer do lado da recepção. Um homem é aquele que parte à descoberta de si próprio, dos seus segredos e da sua verdade escondida; é aquele que procura inventar-se a si mesmo.

Ignora-se em que dose a natureza misturou em cada espírito o gosto pela linha e o gosto pela cor e através de que misteriosos processos ela opera tal fusão, cujo resultado é a obra. Assim, exaltar a linha em detrimento da cor, ou a cor à custa da linha, é, sem dúvida, um ponto de vista; mas não é amplo nem justo, e denota uma grande ignorância dos destinos individuais. Para a crítica ser justa, isto é, para ter a sua razão de ser, deve ser parcial, apaixonada, política, feita de um ponto de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abra mais horizontes. Assim, um ponto de vista mais amplo será o individualismo bem entendido: determinar ao artista a ingenuidade e a expressão sincera do seu temperamento, auxiliada por todos os meios que lhe são concedidos pelo seu ofício.

O crítico deve cumprir com paixão o seu dever porque a paixão aproxima os temperamentos similares e ergue a razão a novas alturas. As artes são sempre o belo expresso pelo sentimento, pela paixão e pela fantasia de cada um - isto é, a variedade na unidade, ou as faces diversas do absoluto - a cada instante a crítica atinge a metafísica.

A arte não reside concretamente nem na escolha dos assuntos, nem na verdade exacta, mas na maneira de sentir. Há quem a procure fora, mas só é possível encontrá-la dentro. Um crítico, por mais puro que seja, não pode ser incessantemente um espírito material em busca do sólido; mas antes um poderoso idealista que faz sonhar e adivinhar para além das suas observações. O elemento próprio de cada beleza provém das paixões e, como temos as nossas paixões próprias, temos a nossa beleza.

Para um crítico criticar é preciso que, como espectador, opere dentro de si uma transformação algo misteriosa, e que através de um fenómeno da vontade a actuar sobre a imaginação, aprenda por si mesmo a participar do meio que deu à luz aquela floração insólita. Deve estar pronto a abraçar todo um mundo de novas harmonias que pacientemente o penetram como o vapor de uma estufa aromatizada; apto a que toda uma vitalidade desconhecida seja acrescentada à sua própria; receptivo a que alguns milhares de ideias e sensações enriqueçam o seu dicionário de mortal. É até possível que, excedendo as medidas e transformando a justiça em revolta, o crítico queime o que antes havia adorado e adore o que havia queimado.

Não creio que exista algum homem que possua integralmente esta graça, mas todos podem aspirar-lhe em graus diversos: tanto é verdade que há nas produções múltiplas da arte algo de sempre novo que eternamente escapa à regra e as análises da escola. O espanto, que é um dos grandes prazeres causados pela arte e pela literatura, depende dessa mesma variedade de tipos e de sensações.

2 Comments:

At 21.4.11, Blogger Priscilla Fontoura said...

vou imprimir este texto e colar na parede do meu quarto, muito bom!

 
At 21.4.11, Blogger Priscilla Fontoura said...

"Um homem deve cultivar a curiosidade e a ingenuidade da criança, apontar para um despojamento das convenções (sociais e artísticas) e uma reencarnação do olhar, quer do lado da criação, quer do lado da recepção. Um homem é aquele que parte à descoberta de si próprio, dos seus segredos e da sua verdade escondida; é aquele que procura inventar-se a si mesmo." - SIM SIM SIM

 

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