...e o Rock criou o Rock
Na semana passada o meu colega blogger Carlos Pinto escreveu acerca do estado actual e futuro da música, artigo esse que li atentamente e gostaria de comentar. Interessaram-me as questões que colocou acerca do futuro e hipotética perda de relevância do rock, pois, de certo modo, ao mesmo tempo que as faz não observa que a resposta ao enigma reside no próprio passado que brevemente descreve.
Efectivamente o rock é hoje um facto consumado; Little Richard e Chuck Berry lançavam o medo no fundo dos corações mas, hoje em dia, perdeu-se o propósito libertador que incendiou o mundo. Está tudo neutralizado, nada ameaça, nada desafia, a liberdade musical é total, e por isso, paradoxalmente asfixiante - toma-se como verdade a mais que batida patranha panfletária “ John Cage 4’33 = a música acabou”. Na realidade, tal como carros puxados a cavalos, talvez nunca mais ouçamos esse ardor dos anos cinquenta e sessenta.
Os momentos em que o grande público e as majors se interessaram pelo rock são raros. Foram períodos excepcionais. A explosão do punk-rock em 1977 é um dos testemunhos disso. O público não consegue sustentar durante muito tempo o investimento que pressupõe a audição de ‘verdadeiros’ grupos de rock e, as editoras, sentindo-se em perigo, muito rapidamente reagem adoçando o seu catálogo.
A tensão progressivamente cai e impõe-se um ‘rock’ que é na melhor das hipóteses “pop”, permitindo uma audição mais desligada, depois dos verdadeiros rockers terem tirado o cavalinho da chuva. As novas vias exploradas na maior parte das vezes então degradam-se, transformando-se em clichés enquanto o rock volta ao underground (companhias independentes, concertos privados, público motivado mas restrito). Até à próxima explosão.
Mas até que ponto estaremos todos a falar do mesmo? Incorreremos numa tautologia semântica? artística? O termo original rock ‘n roll reduziu-se a rock, sendo este último muito mais vago, incluindo bandas desde Elvis. Apareceram as subespécies, os ‘géneros’: hard-rock, punk-rock, folk-rock e até mesmo denominações que, a meu ver, raiam o contra-senso como desert-rock (então o rock é revolta/acção ou relax/soneca?).
Contudo, a mesma palavra está sempre presente em todas estas denominações o que nos leva a crer que existe um rock quimicamente puro, comum a todos estes grupos, que poderemos isolar e descrever. A minha opinião não é essa e duvido que se facilmente encontrem afinidades entre Elvis e Tangerine Dream para que os possamos entender sob o mesmo termo genérico. Além disso, ao considerar o rock todo como um todo, homogéneo e definido, e ultrapassando os problemas surgidos numa tentativa de definição ou, no mínimo, de clarificação, continuaríamos o erro irritante dos media que não hesitam em empregar a palavra rock a torto e a direito. É o mesmo erro do familiar que coloca tudo no mesmo saco aquando do Natal – vá-se lá explicar a um pai disposto a comprar um disco rock para a sua prole que vai ao encontro de graves desilusões se pensa que qualquer coisa serve desde que seja barulhenta.
Noutros domínios, as coisas são muito mais nítidas; falar dos livros em geral (“gosto de livros” ou “leio muitos livros”) não tem o mínimo sentido. Um romance mesmo muito chato do Saramago não está no mesmo plano que uma produção feita a martelo da Margarida Rebelo Pinto. Estas obras têm funções diferentes. O mesmo se passa, naturalmente, com o rock, onde se encontram igualmente o trigo e o joio, criações e clichés.
Frequentemente encontra-se a) uma ausência de definição: tudo é supostamente conhecido; b) uma definição implícita pelo exemplo: “O rock é Isto e Isto. Ponto.”; c) explicações sociológicas, interessantes de resto, até mesmo necessárias, que informam bem no que diz respeito à recepção das obras mas negligenciam o que diz respeito à sua produção e execução.
É preciso ainda assim encarar o facto de que certas bandas têm pontos em comum, uma forma parecida de encarar a criação musical, e isto independentemente das épocas. Tal significa que podemos traçar uma linha temporal unindo artistas, permitindo-nos fazer um certo número de observações a seu respeito e actualizar continuamente um conceito de rock no sentido estrito; depois do que, será mais fácil justificar a existência de ‘rock’, muito mais alargado e que poderemos considerar consoante o caso como transformação, evolução ou degradação do conceito inicial.
Assim como no jazz, o rock não pode inscrever-se na partitura e não existe antes de a nota ter soado, encontrando-se a sua essência no domínio da interpretação. É portanto a nível da execução que se vai agrupar a maioria observações que ensaiei aqui, delimitando melhor a ideia de rock no sentido restrito: exprime excitação e rebelião (musicalmente a acentuação irá para tudo o que possa valorizar a tensão e a urgência); integra os conceitos de credibilidade e de incarnação (essencialmente a nível de texto); situa-se num jogo de referências (tempo sagrado, o próprio rock reconhecido como entidade superior pelo artista); é uma música popular (importância da forma cantada, função social).
Usurpo então a máxima de Lavoisier aplicando-a à música: nada se perde, tudo se transforma. As nossas dúvidas perante o futuro são desmascaradas pela leitura do passado. A purificação ou distorção de um género musical é permanente e cíclico respondendo tanto à oferta pré-existente como ao zeitgeist. A criação do novo nunca negará por completo o que lhe antecede, e, se o próprio rock parasitou outras formas, desenvolvendo-se pervertendo o blues, o R ‘n B, o country, será obrigatoriamente presa para o futuro.
Será em nome do próprio rock, em nome da sua essência rebelde e inatingível que novas gerações terão que percorrer novos caminhos. A lição do rock não é letra morta e a linha da frente é certamente a da explosão.
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