01 julho, 2011

Carne e Queda

O título é chamativo, não?

Já há uns bons tempos atrás, um amigo ofereceu-me o livro "Nova Teoria do Sacrifício" onde o autor, José Teixeira Rego, expõe uma teoria para o mito da Queda e que pretende explicar a origem do sacrifício animal ritualizado.

Enquanto vegetariano, e entusiasta de Mi
tologia e Antropologia, li com bastante interesse este pequeno mas fascinante livro.

Recorrendo a um estudo de Religião Comparada e análise simbólica, dá-nos uma visão alternativa muito curiosa e sobre a qual vale a pena reflectir.

Diz-nos Agostinho da Silva, aluno de Teixeira Rego no seu "A Religião Grega" de 1930:
É possível que a princípio o sacrifício simbolizasse a queda por um alimento animal, a expiação da morte da primeira rês; por qualquer circunstância, o homem, primitivamente frugívoro, teria sido obrigado a alimentar-se com a carne de animais, até aí sagrados para ele; abatera o primeiro e logo sentira todo o horror do seu crime: matara um companheiro, um amigo, e o seu primeiro movimento foi de fuga; depois, para que os deuses lhe perdoassem, fazia-os tomar parte no festim. O rito estranho das Bufónias, antiquíssimo, reproduzia com pormenorização a cena primitiva: havia a fuga do sacrificador, a acusação de todos os que tinham tomado parte na cerimónia; finalmente, a condenação dos instrumentos que tinham servido para cometer o crime

Quanto ao primitivo vegetarianismo, acrescenta Teixeira Rego em "Nova Teoria do Sacrifício" de 1918:

A Pré-História dá-nos o homem caçador, pescador, ao passo que os antropóides são frugívoros, e, factos notáveis, o homem conserva o aparelho digestivo dum frugívoro, nas suas tradições refere-se a um passado de frugívoro, tem uma repugnância instintiva pela carne crua, e, finalmente, grande parte das suas doenças são devidas às toxinas dos alimentos animais. Ainda hoje, apesar das inevitáveis modificações que longos séculos de omnivorismo produziram, existe a possibilidade no homem duma alimentação exclusivmente frugívora, tantos e tantos séculos foram frugívoros os nossos antepassados antropóides!

Confesso que não estou a par de estudos modernos sobre estas questões, mas parece-me muito verosímil este vegetarianismo primitivo.

Já vi muitos símios com dietas omnívoras mas a semelhança entre espécies não valida ou exclui nenhuma teoria... é possível que o antropóide (termo utilizado pelo autor) da altura convivesse até com outros símios omnívoros ou até mesmo carnívoros - Teixeira Rego refere um estudo realizado, em que símios de dieta vegetariana foram expostos a alimentação carnívora durante um longo período de tempo; um dos resultados mais visíveis foi a queda da pelagem dos mesmos o que, para o autor, surge como uma possível explicação para a queda da nossa própria pelagem.

Sendo esta teoria válida, pergunto: o que aconteceu? O que mudou afinal connosco para mudarmos de dieta?

O horror, o tabú adivinhado de matar um animal para o comer foi ritualizado e, com o tempo, suponho eu, esta dieta foi "normalizada" pelo hábito e pela profanação do ritual, tornando-o mecânico.

Havia um homem [o Iniciado Pitágoras], nativo de Samos, que fugira de Samos e dos senhores da ilha por detestar a tirania, preferindo viver voluntariamente no exílio. Com a sua mente espiritual aproximou-se dos deuses, embora muito distantes nas regiões do céu, e percebeu com os olhos do intelecto o que a natureza negava aos olhares do homem comum. […] Foi o primeiro a denunciar o costume de servir carne de animais à mesa, e também o primeiro a pronunciar, com a sua boca sábia, estas palavras: “Abstende-vos, mortais, de contaminar os vossos corpos com alimentos ímpios! Tendes os cereais e as frutas que inclinam os ramos com o seu peso, e os abundantes cachos de uvas nas vinhas, e as verduras saborosas, e nem o leite nem o mel perfumado vos estão vedados. A terra generosa proporciona-vos um sem-fim de fecundos alimentos pacíficos, e oferece-vos banquetes sem necessidade de matança nem de sangue. Só os animais é que saciam a fome com carne, e nem sequer todos. […] Ah, que grande crime é introduzir vísceras nas próprias vísceras, e engordar o corpo insaciável enchendo-o com outro corpo, e que um ser vivo viva da morte doutro ser vivo. […] Mas um primeiro instigador funesto, não sei quem, sentiu inveja da comida dos leões e sepultou no seu ventre ávido alimentos corpóreos, abrindo o caminho para o crime.

(Ovídio, Metamorfoses, livro XV)

Actualmente o padrão é a dieta omnívora, que é até apresentada pela maioria dos médicos como a única possível. Muitas pessoas não questionam a origem da sua comida; consomem-na sem pensar na vaca ou porco que era antes de ser fatiado e embalado.
A verdade é que mesmo para muitos dos que comem carne, a ideia de abater um animal com as próprias mãos é uma ideia macabra...

O vegetarianismo não é de agora, não é um fruto de uma reflexão burguesa sobre o mundo, mas uma questão que aparentemente tem acompanhado a nossa espécie desde sempre. É uma ideia antiga, persistente talvez por ser "original" i.e. da origem.

Não pretendo lançar grande debate sobre o vegetarianismo mas queria mesmo partilhar estas ideias com alguns dos leitores que se interessam por estes assuntos.

Comentários?

9 Comments:

At 1.7.11, Blogger Scometa said...

Acho que muito mais complexa a necessidade do ritual de sacrificio nas tribos mais primitivas. O que terá provavelmente sido a viragem de frugívoro para omnívoro poder-se-á prender com alterações climáticas que obrigaram as tribos a procurar novas fontes de alimento. Mas, o ritual do sacrificio, que evolui até à forma de sacrifícios humanos, está mais ligado ao sangue e à transcendência que dele emana, sendo um símbolo de vida e morte ao mesmo tempo. Não me parece nada que, quando essas primeiras tribos mataram o primeiro animal, tenham semtido qualquer horror ou que já expressassem sequer tendências metafísicas, como a noção de divindades. A natureza animal que a todos nos é comum era alheia nessa altura a divagações sobre o significado simbólico do que quer que fosse, estando apenas imanente uma necessidade de sobrevivência. O que nos levou daí aos rituais, é uma história completamente diferente.

 
At 2.7.11, Blogger vera viana said...

O Animal Liberation http://en.wikipedia.org/wiki/Animal_Liberation_(book) do Peter Singer (embora controverso por outras ideias que defende) convence qualquer pessoa a tornar-se, se não vegan, pelo menos, vegetariana.
Obrigada, Rodolfo, pelo tópico proposto que é bastante interessante, embora de discussão interminável - seria como tentarmos convencer, pela força da argumentação, um religioso a tornar-se ateu...

 
At 2.7.11, Blogger tak said...

Leitura muito interessante, com este hamburger de perú a acompanhar mmhmm. Mas concordo com o Scometa, a malta já matava antes de pensar nos porquês e nos senãos.

 
At 2.7.11, Blogger tak said...

E vou ver se saco esse livro, pareceu interessante

 
At 3.7.11, Blogger Rodolfo said...

@scometa: não sou tão peremptório a excluir a experiência religiosa na Humanidade primitiva.

O Homo erectus foi, provavelmente, o primeiro humano a viver numa sociedade recolectora-caçadora, utilizava o fogo controlado (na Europa e Ásia, possívelmente já há 1.5 milhões de anos) e possívelmente conseguia fazê-lo (de acordo com um trabalho apresentado em 2004, que sugere indícios de criação de fogo em Israel há 790.000 anos).

Tendo sido possívelmente o primeiro a introduzir a carne na sua dieta (bem como as bagas e os frutos secos, ao contrário do seu antecessor Homo habilis que ingeria maioritariamente plantas), existem indícios de caçadas a cavalos organizadas (em Inglaterra, há cerca de 500.000 anos), o que requereria algum tipo de linguagem - algo que é ainda questão de grande debate.

Não me é difícil imaginar que um ser que vivia em comunidade, que tinha a capacidade de fazer fogo e uma linguagem minimamente organizada, fosse capaz de desenvolver religiosidade.

Existe até a possibilidade de a história ser outra ainda, mais macabra...

Dietrich Mania escavou um local em Bilzingsleben que continha grupos de pedras e ossos dispostos num círculo. Foi igualmente encontrado uma mó em quartzite disposta entre os cornos de um bisonte, e perto deles diversos crânios humanos fracturados.
Isto não só demonstra a existência de religião, como aventa a possibilidade de se realizar o sacrifício humano - e a isto podemos sempre juntar os outros indícios todos de canibalismo.

Agora vou eu mais além e pergunto, não será até possível que o mito da Queda tenha sido originado pelo facto do sacrifício primordial ter sido o humano? Se calhar o sacrifício humano "evoluiu" para o sacrifício animal...

Também não me parece tão impossível assim que algo que tenha sucedido - algo desta importância, pelo menos - nesses tempos distantes do Homo erectus, tendo sido ritualizado na altura, tenha sobrevivido sob a forma de mito até aos nossos tempos, sujeito às revisões dialécticas e poéticas próprias da evolução intelectual da espécie.

 
At 3.7.11, Blogger Scometa said...

O meu grande problema com os estudos antropológicos sobre a origem dos mitos e das religiões é a de que tudo está num campo profundamente teórico. Os factos irrefutáveis escasseiam, o que provoca divagações de todo o género. O tratado sobre a história das religiões, do Mircea Eliade, vem de uma forma muito geral teorizar que a religiosidade primária nas tribos está fortemente enraízada nos elementos (terra, água, fogo, ar), muito consoante a localização geográfica das mesmas tribos. Aliás, todas as grandes religiões, dos egípcios aos gregos, desenvolvem os seus mitos através de uma forte ligação a estes elementos. Nos gregos havia inclusive uma discussão muito forte, nos pré-socráticos, sobre qual dos elementos teria sido o mais importante na origem da vida ou de todas as coisas.

Há também uma corrente alternativa que defende que a civilização humana precede em muito aquilo que pensamos conhecer, corrente essa igualmente fundada em evidências científicas que são totalmente contraditórias com a versão oficial conhecida pelo público, como os vestígios de chuvas torrenciais nos muros adjacentes à Esfinge de Giza, apenas possíveis aquando das chuvas tropicais que assolaram a zona no final da última idade do gelo, que contradizem a data oficial apresentada para a sua construção em 2.500 BC. É sabido que as drásticas alterações climáticas têm efeitos muito profundos no Homem e na terra em si, sendo que o degelo provocado há cerca de 12000 anos atrás cobriu extensões de terra equivalentes ao continente Europeu, podendo ter escondido muitos vestígios de outras civilizações. Lembra-te sempre que quem iniciou o mito de Atlântida foi um gajo chamado Platão, que no Timeu fala que este mito lhe foi passado por Solon e a este pelo avô, e por aí fora até uma data muito próxima daquela que hoje conhecemos como o final da última idade do gelo.

Isto tudo para dizer que há algo que nos escapa na história das religiões e na origem das civilizações humanas. Tu não podes passar de grupos sedentários, com rituais tribalísticos, para civilizações dotadas de arte complexa, com estruturas tão perfeitamente construidas que ainda hoje baralham a comunidade científica , num tão curto espaço de tempo como as evidências parecem sugerir.

Não poderão ser, em tribos dispersadas após um grande cataclisma na Terra, que todos os rituais sagrados sejam remanescentes de algo que perderam milénios atrás?

 
At 3.7.11, Blogger Rodolfo said...

@scometa: eu subscrevo a atlântida, a hiperbórea e todas as demais :)

a datação de giza tem muito que se lhe diga de facto, não só pela erosão da chuva mas também pelos alinhamentos que as três pirâmides demonstram ter com alguns astros, visíveis em datas muito anteriores ao que se atribui normalmente.

a arqueologia é uma disciplina falível e conta com um adversário terrível: a auto-censura; nunca é fácil enfrentar a "academia" com novas teorias que questionem muito o status quo.

não sei se os rituais são memórias de um passado antediluviano mas isso explicaria lindamente a ubiquidade de alguns símbolos.

seja como for, a teoria do sr teixeira rego, ou as minhas, podem facilmente ligar-se a esta ou a outras humanidades anteriores sem dificuldades de maior, preservando os contornos essenciais: o sacrifício e a expiação obtida pela participação dos deuses na matança (a ritualização).

pode muito bem ser que, por exemplo, o mito da queda tambem conhecido pelos sumérios - no formato gilgamesh - lhes tenha sido transmitido pelos fundadores da sua civilização (os sumérios de acordo com as suas próprias crenças, vieram do mar com um rei pastor) e que estes o tenham preservado e transmitido aos seus vizinhos semitas; eles podiam ainda ter conservado a ritualização associada ao mito mas, com o tempo e afastamento, acabaram por se esquecer da origem do mito, ou mesmo do tabú do qual o ritual emergira e adaptaram-no/converteram-no para outras realidades.

acho esta teoria do sacrifício interessante, seja em que contexto cronológico for, sem dúvida :)

 
At 4.7.11, Blogger Scometa said...

Bem, os Sumérios são outra história. O mito de criação deles é, para muitos, o mito original, aquele que influenciou basicamente toda a mitologia das civilizações que lhes sucederam (à excepção das américas, mas aí entram outras teorias), que encontramos inclusivé no antigo testamento. A exegese dos textos sumérios é ainda vaga em muitos aspetos, sendo que se percebe da existência de alguns reis-pastor que eram criados pelos deuses para controlar os humanos. Depois encontramos a tal correlação com a teoria dos ancient aliens, no tal mito da criação pelo barro, e de como eles falharam em criar os primeiros humanos, que saiam defeituosos. E que os haviam criado para ser uma força de trabalho dos Deuses (Sky Gods).

Isto é interessante para uma primeira abordagem http://faculty.gvsu.edu/websterm/SumerianMyth.htm

 
At 4.7.11, Blogger Carlos said...

Li uma vez um exemplo que achei bastante interessante: uma criança seria capaz de saltar o muro de uma propriedade para roubar um fruto de uma árvore, mas não o faria para roubar um animal a fim de o comer. Um exemplo simples mas que me fez pensar.
Existem muitos argumentos que tentam mostrar que o homem não é suposto comer carne, desde maiores semelhanças físicas a animais herbívoros aos inconvenientes que a carne trás à sua saúde; penso que existem estudos que mostram que pessoas que não se alimentam de carne vivem em média mais 10 anos que as restantes.
No entanto são os argumentos de carácter psicológico que mais me convencem, como o Rodolfo diz, a maior parte das pessoas não pensam/não qestionam aquilo que estão a comer, não só quanto à sua origem como os químicos que lhe são adicionados, e se tivessem que matar elas próprias o animal, penso que muitas não o fariam.

 

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